O ponto de não retorno
Divagações sobre os caminhos sem volta, a estabilidade emocional, a literatura profunda e algo mais.
Hoje eu tava lendo um livro tão bonito, chama “O verão em que mamãe teve olhos verdes”, teve uma hora que tive que parar a leitura porque meus olhos inundaram e eu não queria manchar as páginas, pois ele está ficando todo grifado com meu marca texto cor-de-rosa. Tinha tempo que isso não acontecia, de chorar assim, lendo um livro. Não sei se é efeito dos antidepressivos (que tendem a bloquear as emoções), se eu não tenho escolhido livros suficientemente emocionantes, se eu tô vivendo uma fase emocionalmente estável ou todas as alternativas anteriores.
Nos últimos meses, o trabalho também não andou deixando muito espaço para emoções diferentes de estresse, temperado com gratidão. Pra quem é freelancer, todo job é uma benção e a gente nunca esquece os períodos de vacas magras. E quem tá acostumado a trabalhar com audiovisual, sabe a cachaça que é… até o programa ir pro ar (ou o filme/série estrear), parece que a gente vai enlouquecer, mas aí quando vem um projeto novo, a gente abraça com todas as forças como se não lembrasse que tentou escalar as grades do hospício da última vez e volta para lá por livre e espontânea vontade, mesmo sabendo que, invariavelmente, vai acabar usando aquele traje a rigor: a camisa de força.
Ainda assim, me atrevo a dizer que estou atravessando uma fase estável porque ando fazendo planos que diariamente se mostram cada vez mais distantes e, mesmo assim, não me abato. Crio planos B e C e quando esses também se mostram muito frágeis, pulo pro D, E, F… pode parecer meio Pollyanna (e meio contraditório vindo de mim, que sempre declarei certa antipatia por essa personagem) mas tenho gostado de pensar que ainda tenho o alfabeto inteiro de possibilidades para explorar.
Ainda não consigo cumprir tarefas básicas que vejo as pessoas fazendo diariamente com aparente facilidade. Planejo, por exemplo, me matricular numa academia há mais de um ano, largar essa vida sedentária, beber pelo menos três litros d’água por dia, organizar melhor minha rotina e, até o momento, não consegui lograr êxito em nada. Me alegro, no entanto, com outros avanços miudinhos. Nunca mais levantei da cama e passei o dia de pijama, já não tomo café com açúcar há oito meses e minha alimentação melhorou a ponto de eu ter sido surpreendida essa semana por um desejo repentino de comer brócolis. Esse foi, de longe, o desejo mais insólito da minha vida adulta. Adoro o fato de ter voltado a caber nas minhas roupas, sobretudo porque é a primeira vez que emagreço de forma saudável.
Quase não acreditei quando joguei um pote de hidratante facial no lixo porque havia acabado e não porque estava vencido, como era de costume. E me dei ao luxo de comprar outro de uma marca melhorzinha porque, bom, agora tenho 40 anos e minha pele precisa ser tratada com alguma decência pra variar. E também porque gosto de pensar que a compensação por ter voltado espontaneamente pro hospício é justamente poder me proporcionar certos luxos.
Mesmo assim, eu estava há mais de uma semana com um produto para queda de cabelos no carrinho da Amazon, decidindo se deveria comprar ou não porque achei o preço salgado demais. Daí me peguei pensando no quanto eu sou pão dura pra gastar em coisas boas pra mim. Minha alegria é fazer compras baratinhas e, quando alguém elogia a minha brusinha da feirinha, poder dizer: “menina, cê não vai acreditar na pechincha que paguei nisso aqui!”. Mas se for pra presentear alguém que eu amo, tô eu lá, felizona, gastando sem fazer miséria.
A quantidade de fios de cabelo que tiro diariamente dos cômodos de casa daria pra fazer uma peruca, de modo que ver meu cabelo ficando ralo tá me incomodando bastante e mesmo assim eu ainda estava buscando a solução mais econômica (e obviamente menos eficaz) pra tentar evitar a calvície. Freud explica. Mas eu não quero recorrer à psicanálise pra buscar uma explicação agora, nem vou chegar a levar essa pauta pra terapia (mesmo porque minha terapeuta tá de férias, assim como toda a Itália, que para de funcionar no verão). Foi por isso que, enquanto escrevia esse texto e identifiquei esse comportamento, fui lá no site e finalizei a compra. Agora eu tô assim, pá-pum. Sem tempo, irmão.
Eu não sei se essas recentes mudanças de hábitos e comportamentos são uma fase ou se virou alguma chavinha aqui dentro. Mas, pra determinadas coisas, tenho a sensação de que cheguei no “ponto de não retorno”. O que significa que mesmo se eu quisesse voltar atrás, ou agir como antes, não seria possível.
Embora a teoria do ponto de não retorno normalmente se aplique à impossibilidade de retornar ao estado original relacionado à intempéries climáticas, na psicologia, pode-se dizer que trata-se de um ponto que a mente humana alcança que a incapacita de voltar a pensar - e agir - como antes. Isso pode acabar mal se, além de compreensão e consciência, você for capturado por uma ideia fixa ou se sua mente te levar pra um lugar sombrio de paranoia. É raro, mas acontece com relevante frequência. Por aqui, entretanto, acredito que estou pisando pianinho no terreno da consciência. Apenas. Pelo menos por enquanto.
Dia desses, conversando com minha amiga Cami, com quem gosto muito de divagar sobre a vida, o universo e tudo mais, falávamos sobre as transformações que ela sofreu num espaço de tempo muito curto. Ela ainda não se habituou à sua nova versão e, embora goste mais da atual, ela se ressente um pouco de não poder retornar - mesmo que de vez em quando - ao que era. Ambas sabemos que isso é impossível, porque uma vez que você ganha consciência sobre determinadas coisas, não pode mais voltar atrás. É o tal ponto de não retorno, cuja fase ela batizou de “o luto do caminho sem volta”.
Tendo ciência dessa consciência, às vezes, me vejo acumulando adiamentos de resoluções em outros aspectos da minha vida que, uma vez que forem tomadas, não haverá um caminho de volta. Faço vista grossa pro meu carrinho, que acumula certas decisões que estão a um “clique” de distância.
Por sorte (ou estratégia), voltei a mergulhar na literatura e a ter encontros com livros magníficos que me mantém afastada da angústia provocada pela ansiedade que, em outro momento, me fariam visitar toda hora o meu carrinho pensando se é hora de clicar ou não.
Me contento, por ora, em tratar da minha da minha pele e da minha queda capilar, enquanto faço planos mirabolantes com o alfabeto inteiro, vario o cardápio com brócolis e carboidrato pois faço questão de comer nhoque todo dia 29 com uma nota de cinco euros debaixo do prato, assopro canela todo dia primeiro e me distraio com histórias de personagens magnéticos, perturbadores, encantadores, cheios de camadas, que também fazem lá suas simpatias, têm suas manias e vivem seus pontos de não retorno.
“Por trás da terceira colina, o sol nasceu. Amarelo, redondo, implacável - como uma lâmpada hospitalar dirigida para o meio dos olhos. Paramos no meio da trilha e nos pusemos a olhá-lo longamente, como se fosse a primeira vez, e logo pensamos num desejo. Foi assim que vovó havia ensinado a nós três: sempre que víssemos a lua ou o sol nascendo, deveríamos, com toda força possível, pensar na mesma hora em um desejo, pois ele haveria de se realizar, haveria de se realizar sem falta. Vovô sabia tudo de desejos, mesmo cega e solitária como era.
(...) Mamãe parou de repente e, com ela, parei também, assim como tudo o que estava predestinado a nos acontecer naquele dia. Em seguida, ela pegou na minha mão e me puxou com ela na direção das flores grandes e tristes, que nos encaravam com suas cabeças dentadas. Eu não era mais filho, nem ela era mais mãe. Éramos um mortal assustado e uma feiticeira que conduzia sua vítima para um outro mundo. Demos um último passo, no que os portões do tempo se trancaram atrás de nós como uma braguilha invisível.”
O verão em que mamãe teve olhos verdes, de Tatiana Țîbuleac, tradução de Fernando Klabin.
… ah, e eu fico imaginando se um dia serei capaz de escrever bonito assim, como a Tatiana. E se esse dia chegar, torço para que seja um desses… de não retorno.
Vi, gostei, compartilhei:
Entre começar a escrever a edição desta newsletter, terminar, editar e publicar, terminei de ler o livro O verão em que mamãe teve olhos verdes e, preciso dizer: foi a minha melhor leitura do ano até agora. Mesmo assim, recomendo com cautela, porque é uma leitura pungente, linda, mas dolorosíssima. Em outras palavras, contém elevados níveis de desgraçamento mental. Amei demais.
Outro livro que me dilacerou do jeito que eu gosto foi O Parque das Irmãs Magníficas, da autora argentina Camila Sosa Villada (tradução de Joca Reiners Terron). Mergulhei nas páginas desse livro como se estivesse perambulando pelo Parque Sarmiento de madrugada, observando o movimento das travestis e compartilhando toda sorte de emoção com elas, da mais intensa fúria e revolta por todas as maldades e injustiças à mais genuína alegria e celebração por suas existências. Esse livro é imperdível!
Ainda dentro do universo trans, um filme que fiquei com muita vontade de assistir depois de ler essa edição incrível do Andanças, da maravilhosa Luisa Manske: Caminhos Cruzados.
Pra quem você escreve? Nesse texto, a Fabiane Guimarães fala sobre a escrita corajosa, que alimenta uma esperança miúda, quase ínfima, de que um texto encontre seu destinatário, mas não é a motivação de quem escreve corajosamente. Além disso, nessa edição, ela resgata meu episódio favorito de Doctor Who, aquele em que Van Gogh tem a chance de visitar o futuro e descobrir seu reconhecimento como artista. ♥️
Obrigada por ter chegado até aqui.
Curta, comente, interaja comigo. Vamos construir laços e memórias! ♥️
Para adquirir um exemplar do meu livro, é só clicar nele!
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Um beijo e até a próxima edição!
Roberta Simoni
apaixonada por essa edição sincerona e profunda <3
Mesmo os “loucos” tem seus momentos “sóbrios”, ler seus textos e estar tão próximo, me transportam pra cada momento, uma leitura repleta de amor. 💙