A amiga imaginária dos meus pais
(ou Manual Criativo de Sobrevivência para genitores exaustos)
Eu não me lembro de ter tido um amigo imaginário quando era miúda, mas existia uma figura muito presente na minha vida que se chamava Veruska e que, no fim das contas, era quase a mesma coisa. Ela tinha a mesma idade que eu e costumava se comportar - e se dar - muito mal.
Veruska não nasceu da minha imaginação fértil, mas do desespero de uma mãe e um pai, na tentativa de controlar uma criança que - só hoje sabemos - tinha uma série de transtornos, entre eles, a hiperatividade, facilmente confundida com malcriação, sobretudo nos anos 80.
O nome Veruska exercia um fascínio em mim que até hoje me intriga. Bastava dizer: “lembra do que aconteceu com Veruska?” que eu instantaneamente repensava nas consequências dos meus atos.
Para cada ocasião desafiadora, meus pais improvisavam um novo enredo. Tinha Veruska no supermercado. Veruska na praia. Veruska atravessando a rua. Em quase todas as histórias, o que mudava era o cenário, mas, em via de regra, Veruska estava sempre aprontando e se lascando.
Na praia, ela ia pro mar sozinha e acabava se afogando. Na hora de atravessar a rua, ela soltava a mão da mãe e vinha um carro que não conseguia frear a tempo. A história do supermercado era a que mais me impressionava: Veruska saia correndo pelos corredores, se afastando dos pais, um homem mau a raptava e seus pais ficavam lá, chorando, desesperados.
Eu claramente me comportava do mesmo jeito que Veruska e logo entendi que tudo que acontecia com ela também podia acontecer comigo. Papai e mamãe percebendo meus olhos arregalados ouvindo ATENTAH a todas aquelas tragédias, acabavam mudando o fim da história, afinal, Veruska não era uma menina má, só era desobediente e, para isso, felizmente, havia conserto. Ou, pelo menos, era nisso que meus pais queriam acreditar.
No fim da história, um salva-vidas conseguia resgatar Veruska do mar com vida. Os ferimentos com o atropelamento eram leves. E, por sorte, a polícia conseguia salvar Veruska das garras do moço mau que a raptou no supermercado. Moral da história: Veruska aprendia (sempre pela dor) que não devia desobedecer aos pais, não voltava a cometer os mesmos erros (mas tinha muito talento para inventar novos) e todos viviam felizes para sempre, ou até surgir uma nova situação em que mamãe e papai precisassem apelar para “Os Poderes de Veruska” e elaborar de improviso mais um roteiro cujo enredo e desfecho já conhecemos.
Meus genitores tão de parabéns, sabe? Eu fiz 40 anos mês passado e até hoje me lembro das histórias de Veruska, como se passasse um filme na minha cabeça. Às vezes essas imagens até se confundem com memórias, de tão nítidas.
Eu estudei para ser roteirista, trabalho com ficção. Diferente deles, que aprenderam na escola da vida - e do desespero. Eles criaram uma personagem com camadas, jornada do herói, arco dramático e tudo mais.
Saramago disse que “somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não.”
Ele tinha razão. Papai escreve como ninguém, apesar de nunca ter publicado nada e mamãe é professora de Português e Literatura, mas só se arrisca a fazer listas de supermercado. Mas a criatividade, sem sombra de dúvidas, eu herdei dos dois.
Ontem eu telefonei pra mamãe e perguntei de onde surgiu Veruska. Achei que o nome pudesse ter sido inspirado na tia Vera, que sempre chamamos carinhosamente de Veruska, mas mamãe me explicou que a personagem veio antes dela, porque quando meu tio começou a namorar minha tia, Veruska já havia nascido da imaginação deles.
Conversa vai, conversa vem, mamãe e eu pudemos entender um pouco mais sobre os contornos da personalidade de Veruska… o problema dela, afinal, não era só a desobediência, tampouco se resumia a uma criança malcriada. Num universo onde Veruska cresceu e não deve mais obediência a ninguém, ela continua se envolvendo em situações embaraçosas e arriscadas. Acontece que Veruska é essencialmente impulsiva, distraída e desastrada e possui inabilidades sociais justificadas por diversos transtornos que ela ainda está aprendendo a lidar.
Se eu pudesse, daria um abraço apertado em Veruska e contaria pra ela sobre aquela vez em que eu tive as costelas quebradas num atropelamento mesmo depois de adulta porque me distrai ao atravessar a rua, e aquela outra vez que quase me afoguei, mesmo sendo uma exímia nadadora, porque não percebi que a correnteza tava puxando muito e não era recomendado entrar no mar. Isso sem falar que me tornei um zero à esquerda no supermercado. Felizmente cresci sem sofrer o trauma de um sequestro, mas me perco entre as gôndolas, não tenho nenhum foco para comprar as coisas realmente importantes, não sei diferenciar uma rúcula de um espinafre, e minha única especialidade é escolher chocolates e amaciantes, que gasto horas cheirando até escolher o perfume que mais me agrada.
Contaria pra ela também das inúmeras vezes que fui mal interpretada em algum círculo social porque não consegui filtrar as coisas que falei e depois passei dias repassando o que eu disse na minha cabeça, me sentindo péssima, enquanto as pessoas tocavam suas vidas normalmente sem sequer lembrar daquele episódio.
Se Veruska tivesse me acompanhado até a vida adulta, certamente haveria versões dela em diversas situações sociais, nem sempre com final feliz porque os pais dela não estariam lá para consertar suas cagadas. Mas pelo menos a gente se daria a mão, dividira uma suculenta barra de chocolate e poderia contar com a companhia uma da outra nos momentos de ressaca moral ou quando mais um amigo partiu porque desistiu de lidar com a nossa falta de traquejo.
“Tá tudo bem ter uma amiga imaginária depois dos 40?” - pesquisar.
Obrigada por ter chegado até aqui.
Curta, comente, interaja comigo. Vamos construir laços e memórias! ♥️
Para adquirir um exemplar do meu livro, é só clicar nele!
Você também pode me acompanhar lá no Instagram: @robertasimoni
Um beijo e até a próxima edição!
Roberta Simoni
que texto maravilhoso! adorei as histórias mirabolantes que seus pais criavam. a pobre da veruska igual ao kenny de south park que morre em todo episódio.