As roupas no varal dos vizinhos tremulam há dias, esquecidas, entregues ao capricho do vento e da chuva, rodopiando como se dançassem sem querer. É inverno em Lisboa. A cada manhã, o céu ameaça um sol que nunca vem, e a cidade segue úmida, encolhida no frio. Só ontem o sol deu um tímido respiro — tempo suficiente para lavar e estender minha roupa, apenas para, pouco depois, correr para recolhê-la quando a chuva voltou sem aviso.
Olho a previsão do tempo como quem procura um presságio. Posso lavar outra leva? Devo confiar no céu? Toda vez meu olhar acaba parando no edifício da frente — que, na verdade, fica nos fundos daqui de casa — e me pego pensando: se não tirarem essas roupas logo daí, elas vão pegar chuva outra vez, coitadas. Como se não fossem objetos inanimados, apenas tecido e costura, mas algo que sente. E sofre. Elas se debatem no vento — algumas já penduradas por um único pregador — e imagino que perderam há tempos o perfume do amaciante, aquela memória de limpeza que me conforta tanto. Roupa sem cheiro macio, pra mim, não é roupa lavada. É trabalho em vão.
Mas não julgo meus vizinhos. Talvez tenham viajado, talvez a vida tenha ficado urgente de repente. Quando o mundo desmorona, tanto faz a roupa. Em circunstâncias emergenciais, roupa limpa não é prioridade. Pode ser puro e simples esquecimento e, nesse caso, julgo ainda menos. O sujo não pode falar do mal lavado. E eu sou dona e proprietária da memória mais empoeirada do pedaço.
Sinto um alívio estranho quando olho aquelas roupas ali, ao relento. Gosto de imaginar que alguém simplesmente se esqueceu delas, e quando lembrou, já era tarde demais. Melhor deixar lá. Que jeito, senão esperar secar de novo? Já fiz isso tantas vezes e sempre me achei a pessoa mais displicente do mundo. Mas quando vejo roupas abandonadas nos varais alheios, me sinto menos sozinha, menos errada.
É um alívio parecido com o que sinto quando vejo outras pessoas neurodivergentes compartilhando as mesmas batalhas: tarefas simples que para os outros são automáticas, mas que exigem de nós um esforço consciente. Treinei meu cérebro para lembrar da roupa no varal, de lavar a louça, de tomar meus remedinhos, mas basta um deslize na rotina e esqueço tudo de novo. Vivo em constante auto-vigilância. E tô exausta.
Essa semana conheci meu novo veterinário (vulgo psiquiatra), e ele me disse que esse estado de auto-vigilância está roubando a minha paz. Eu queria, com todas as forças, discordar, principalmente porque não fui muito com a cara dele. Mas não posso. O problema não é apenas vigiar meu corpo, meus passos, meus hábitos. É observar cada pensamento, esmiuçar sentimentos, vigiar as palavras ditas (e as não ditas também). O medo de ser inadequada me consome. Medo de falar demais, de errar o tom, de me expressar de forma equivocada. Pareço um cão de guarda de mim mesma. Isso ainda vai me enlouquecer.
Às vezes, eu só queria largar a roupa no varal. Deixar que o sol, o vento e a chuva decidam por mim. Mas aí vou ter que lavar tudo de novo, porque eu não abro mão do perfume de conforto que me ajuda a existir macia.
Esse texto não é sobre roupas esquecidas no varal.
Vi, gostei, compartilhei:
Tem um filme que tava na minha lista desde 2021 e que, finalmente, consegui assistir nesse começo de 2025. Já faz umas duas ou três semanas que eu vi “C'mon C'mon” (ou “Sempre em Frente”, na versão brasileira) e ainda me pego pensando nele, revisitando algumas cenas que minha memória fez o favor de registrar. Quando isso acontece, eu já sei que o filme vai entrar pra minha lista de favoritos. Sabe sutileza? Aquela beleza escondida nos detalhes? Então. É disso que eu tô falando. Vale cada minuto. E eu gosto de gastar a vida assim, saciando a alma de beleza. 🍿♥️
No ano que passou, eu quis muito fazer uma edição especial dos melhores livros que li ao longo de 2024 mas, é claro, não consegui organizar meu tempo de forma hábil e, mais uma vez, essa edição ficou só na intenção. 2025 começou e, como mês de janeiro durou cerca de 365 dias, li cinco livros e, entre eles, o meu favorito foi: “Pequenas coisas como estas”, de Claire Keegan. Venho pensando em fazer resenhas de livros por aqui e, quem sabe, criar um clube do livro. Se essa ideia te apetece, me conta aqui nos comentários (ou via e-mail, se preferir)? Gradicida! 👀
E por falar em livros, tem esse aqui que a Vanessa Guedes falou no último texto dela: “Querido babaca,”, da Virginie Despentes (autora que adoro), que conversa muito com os escândalos de assédio e misoginia que vem saindo do esgoto do universo literário e que quero muito ler depois dessa resenha maravilhosa.
A gente devia fazer isso mais vezes - para ler ouvindo Mariah Carey - Emotions.
S de Sardinha - a rebeldia do tarô. Mais um texto da Cami que faz a alma da gente ficar num rebuliço danado de bom.
Obrigada por ter chegado até aqui.
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Para adquirir um exemplar do meu livro, é só clicar nele!
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Um beijo e até a próxima edição!
Roberta Simoni
O mundo é mais colorido com suas palavras flutuando nele. Desde que você siga escrevendo, deixa as roupas apodrecerem no varal ❤️🔥
1 voto pro clube do livro 🤩 e vou ter que ir atrás desse filme pra assistir também 😁🤗