Eu não quero um novo eletrodoméstico
O fim de uma era em que eu fui a neta que não comprava eletrodomésticos
Na nossa casa nós nunca precisamos comprar eletrodomésticos. Meu avô tinha uma loja que foi, durante décadas, a única representante de grandes marcas como Arno, Black&Decker e Walita na nossa cidade.
Ainda moço, ele saiu de Cagliari, capital da Sardegna, no sul da Itália, e foi parar atrás de um balcão na Eletrolar, em Cabo Frio, região litorânea do Rio de Janeiro, onde viveu até o fim dos seus dias.
Eletrolar era uma lojinha de rua, no centro da cidade, onde não vendia-se produtos novos, apenas peças originais e, nos fundos, funcionava a oficina onde fazia-se consertos de eletrodomésticos. Mas frequentemente os clientes não voltavam para buscar seus liquidificadores, batedeiras, ferros, torradeiras, aspiradores de pó que, depois de restaurados, iam se amontoando e acumulando poeira nas prateleiras da loja de pouco mais de 20m².
A solução que meu avô encontrou foi colocar os eletrodomésticos em uso na casa dos filhos, depois dos netos.
Eu tinha 21 anos quando saí do apartamento que dividia com quatro amigas em Niterói para morar sozinha no Rio. Antes disso, eu vivi por quase um ano num pensionato feminino com mais 15 mulheres. O primeiro lugar que eu morei só, era uma quitinete minúscula no bairro do Flamengo, mas parecia o céu. Um banheiro só meu! Imagina que luxo? O problema é que o apartamento era muito antigo e a fiação estava bem comprometida. Um dia, um curto-circuito queimou boa parte dos eletrodomésticos que eu havia herdado do meu nonno.
Lá fui eu de busão carregando ventilador, secador e mais um monte de tralha rumo à Cabo Frio. Ele consertou o que deu pra salvar e o que não deu, resgatou da Eletrolar funcionando como se estivesse novinho em folha.
A gente nunca tinha eletrodomésticos de última geração, nossos modelos eram os mais vintage, mas funcionavam que era uma beleza.
Quando eu tinha 13 anos, trabalhei na loja/oficina com vovô Palolito. Não foi a melhor experiência da minha vida e, certamente, nem da dele. Vovô era metódico e sistemático, e eu, na melhor das intenções, tentando colocar ordem naquele ambiente empoeirado, só conseguia despertar sua fúria italiana. O que eu não percebia é que a ordem estava na desordem. Ele se entendia perfeitamente dentro do próprio caos. Tirar uma coisa do lugar e colocar em outro era como tirar uma peça fundamental pro funcionamento do seu cérebro. Uma vez que eu entendi isso, me contentei em atender os clientes, a conviver com a desordem organizada dele e a fazer vista grossa para as prateleiras com camadas de poeira cada vez mais grossas.
Aquele foi meu primeiro emprego. E foi também o período da minha juventude que eu mais convivi com meu avô. Poucos anos depois eu me mudei, fiz faculdade, me formei e minhas visitas à Cabo Frio se tornaram cada vez mais espaçadas.
Meus avós envelheceram depressa, vovô Palolito começou a ficar muito debilitado, parou de trabalhar a contragosto e não demorou a apresentar sinais de Alzheimer.
Paolo Simoni - que fazia questão de ser chamado de Palolito pelos netos desde que a primogenita, minha irmã, Elisa, tentando balbuciar seu nome falou “Pa-lo-li-to” e encantou o velho italiano ao escutar o som que o seu nome fazia na voz da bambina -, era um mistério pra mim. Eu, que sempre tive uma curiosidade natural pela vida, a que eu tinha por ele, chegava a ser corrosiva. Mas todas as perguntas que ele me despertava, eram veementemente desencorajadas por todos.
Por que ele nunca mais voltou à Itália desde que partiu? O que ele deixou pra trás? Por que esse assunto sempre foi um tabu na nossa família?
Mamãe lembrava com rancor das vezes que tentou, quando menina, saciar sua curiosidade e só de mencionar a palavra Itália apanhou de bobeira.
A verdade é que estamos falando de um sujeito que foi um pai de merda e um avô presente e carinhoso. Deve ter sido muito difícil e doloroso pra minha mãe dissociar essas duas figuras (que só a maturidade me possibilitou mensurar a distância entre eles) sendo a mesma pessoa.
Uma tarde, visitando a casa dos meus avós, encontrei vovô Palolito mais falador que o normal naquela fase mais avançada da doença. Ele estava nostálgico e me contou como aprendeu a consertar as coisas. Tudo começou numa empresa de geladeiras (GE), no subúrbio do Rio. Depois ele abriu uma oficina nos fundos de casa. Com muito sacrifício, quitou a lojinha, anos depois.
Me fez abrir uma gaveta e catar um documento amarelado, quase desfeito pelo tempo, que me mandou ler em voz alta. Enquanto eu lia, ele repetia as palavras baixinho, com um sorriso de canto, deixando à mostra os dentes que faltavam. Era uma carta de recomendação da GE, onde se lia que o nonno havia sido seu melhor funcionário. Quando terminei de ler, ele me contou, cheio de orgulho, que o dono da tal empresa de geladeiras lamentou por muitos anos sua saída e foi seu primeiro e grande amigo no Brasil.
Era a primeira vez que vovô abria seu passado pra mim. Eu escutava a tudo atentamente, esperando o momento de fazer as perguntas que passei uma vida inteira sondando. Comecei devagarinho, pelas histórias que eu escutava à espreita quando miúda.
Perguntei se ele sentia saudades da Itália e ele não demonstrou resistência. Fez que não com a cabeça. Tudo que eu sabia era que ele havia saído daqui porque o país estava devastado pela guerra, que viveu na miséria e passou fome durante a infância (a ponto de precisar comer um cachorro certa vez), que teve um pai malvado e deixou pra trás uma mãe amada e irmãos cheios de saudade, com quem trocou correspondência durante boa parte da vida.
Quando eu senti que podia avançar um pouquinho mais na minha “investigação”, mamãe me avisou que era hora de partir, pois não podíamos nos atrasar para algum compromisso que - hoje percebo - era perfeitamente adiável diante daquele momento que nunca mais se repetiria. Todas as visitas que aconteceriam posteriores a essa, já encontraríamos o velho debilitado demais, e com a memória comprometida pelo avanço do Alzheimer.
Hoje, não raro, eu ando pelas ruas da Itália e cruzo com algum velho que se veste de um jeito semelhante ao meu nonno, a outro que fuma seu cigarro despretensiosamente enquanto fala e gesticula igualzinho a ele, ou que tem o mesmo cheirinho que o dele, e aquele perfume impregna as minhas narinas de uma saudade que atinge meu coração em cheio.
Essa saudade dói num lugar diferente. Ela mora nas lacunas que não foram preenchidas, nas perguntas que não foram respondidas, em tudo que não foi vivido.
A Eletrolar viveu mal das pernas ainda por muitos anos sob o comando do caçula de Paolo Simoni. Só fechou as portas de vez e foi vendida há pouco mais de um ano. Mas aqui na Itália, eu percebo, muitas lojas se mantêm iguaizinhas a dele. Essas lojas que atravessam gerações na mesma família, num país que insiste em ser analógico enquanto o mundo está cada vez mais tecnológico.
Eu paro diante da vitrine e fico um tempão olhando feito um cão diante daqueles frangos giratórios de padaria. Tem sempre um velhinho atrás do balcão esperando que eu entre e solicite algum serviço. Qualquer dia, se eu considerar amigável a feição de um senhorzinho desse, me encho de coragem, entro lá e pergunto se ele não tem interesse em me adotar como neta.
Imagina esse pedido insólito:
“Per favore, ho bisogno di un nonno. Vorrei essere tua nipote.”
Eu tive o privilégio de conviver com meu avô por mais de três décadas. Eu sei que é mais do que muita gente teve. Mas desde que eu me mudei pra Itália, aquela curiosidade que eu tinha sobre ele ficou aguda, inflamada... provavelmente porque se misturou com aquela saudade que eu mecionei, cheia de lacunas, que nunca vai ter preenchimento de avô postiça que dê jeito.
Eu queria saber bem mais do que sei e parar de ficar me queixando por ter que pagar para adquirir eletrodomésticos como qualquer pessoa faz. Eu, que encho a boca pra dizer que sou desapegada, só queria poder continuar usando meus aparelhos velhos e empoeirados, como agora estão ficando as lembranças que eu tenho do nonno Palolito.
Se eu pareço mão-de-vaca porque sempre resisto a ideia de comprar um novo eletrodoméstico é porque o aspirador de última geração, a torradeira novinha, o liquidificador moderno, o ventilador silencioso e aquele secador de cabelo in-crí-vel são um lembrete que meu avô não está mais aqui. Eles simbolizam intrinsecamente o fim de uma era em que eu era a neta que não comprava eletrodomésticos.
E agora eu vivo assombrada de viver pela metade com os meus que eu deixei lá no outro continente.
Vi, gostei, compartilhei:
As manifestações discretas dos traumas, daquela que sempre escreve com uma sensibilidade única e comovente: Bárbara Bom Angelo.
A vida é uma corrida ao contrário. Vence quem chega por último. (Namárcia na sua melhor versão romancista)
Escritores que não sabem dançar (Ou: Conselhos profissionais que soam muito como conselhos amorosos)
A beleza é tudo aquilo que você não dá conta de ver sozinho. Trecho da fala de Bartolomeu Campos de Queirós, “A Beleza não cabe na gente.”
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Um beijo e até a próxima edição!
Roberta Simoni
Que texto lindo! Que lembranças especiais! Foi uma delícia ler essa publicação. <3
Um prazer ler esse texto tão íntimo. Minhas origens italianas, portuguesas e sírias nunca foram explicadas quando era mais jovem. Os motivos são parecidos: guerra, fome.
Hoje felizmente, sei um pouco mais. Me identifico muito com essa vontade de saber sobre suas (nossas) origens.