Imune às mudanças e aberta à CPI das críticas
Depois de dezenas de mudanças, descubro que estou ficando imune a esse trauma. Mas minha imunidade não é boa o bastante para lidar com outros medos. Abro, então, uma CPI para me investigar.
Tenho saudades de escrever no presente e me ponho a praticar. Ou a testar. Quero ver se eu ainda sei fazer isso: viver no agora.
Passo os últimos dias submersa escrevendo o artigo que preciso entregar para a minha coluna e esse texto exige de mim muita pesquisa e cautela. É um tema delicado, que eu mesma me propus a escrever, que expõe minha fragilidade, mas que eu acredito que pode ajudar um tanto de gente que está na mesma situação que eu já estive: saindo do Brasil, aterrorizada com o desconhecido pelo atenuante de ter doenças mentais.
Não quero desencorajar ninguém, ao contrário, quero mostrar que é possível, sim, mas que é preciso se preparar. Porque, de todos os desafios que encontramos ao imigrar, as barreiras climáticas, culturais e do idioma, parecem miudinhas diante da turbulência emocional provocada por uma mudança dessa dimensão.
Semana passada, li num livro que eu esqueci qual é (porque estou lendo uns cinco simultaneamente por pura falta de foco) que o processo de mudança é considerado um dos eventos mais traumáticos na vida de um ser humano. Havia comprovação científica ali. E o artigo se restringia à mudanças de casas.
Pelas minhas contas, eu já tive 28 endereços. Talvez tenha tido mais. 28 mudanças em 38 anos, pelo menos.
Na entrada do metrô do meu atual bairro, onde vivo há apenas sete meses, penso: como é charmosinho esse cantinho. Daí me lembro como eu também gostava da pracinha que ficava próxima ao metrô do Flamengo, bairro onde morei durante mais tempo no Rio (quase quatro anos). E lembro da feirinha da General Glicério, em Laranjeiras, onde rolava chorinho na pracinha aos sábados, pastel com caldo de cana e, durante a semana, eu praticava corrida de uma extremidade à outra da rua e depois parava pra descansar sentada num banquinho debaixo de umas árvores frondosas e pensava que jamais poderia ficar longe daquele lugar, porque eu amava viver ali. E veja só… agora eu também amo viver aqui, do outro lado do oceano.
Quando eu penso nesses lugares do passado, dá saudade, mas não dói. Talvez a minha alma cigana tenha me deixado imune ao trauma da mudança. Eu aprendi a ficar articulada na arte de encaixotar e desencaixotar minha vida, de caber em espaços minúsculos, de me adaptar sem me queixar (tanto), de saber que gostar de estar nem sempre significa pertencer nem permanecer.
Mas eu precisei passar por esse processo dezenas de vezes até ficar suave. Até chegar ao ponto de me sentir confortável em viver abandonando os lugares que amo - desde a primeira vez que eu fiz isso, aos 18 anos, quando saí da casa dos meus pais, na minha terra natal (Cabo Frio) e fui viver sozinha na cidade grande, até agora, 20 anos depois -, meu cérebro precisou encontrar artimanhas para tornar tudo isso menos doloroso, caso contrário, como boa canceriana que sou, eu viveria presa ao passado, sofrendo pelo que deixei pra trás.
Volto pro artigo e lembro da responsabilidade que preciso ter de separar a minha experiência pessoal da expectativa alheia. Não estou escrevendo para ciganos, afinal. E, ainda por cima - preciso lembrar - estou falando também de transtornos psicológicos.
Deixo o texto dormir para voltar a trabalhar nele no dia seguinte e vou dormir também.
*
Desperto, mas não faço movimentos bruscos, esperando que ele não perceba e venha me acordar. Ele suspende a persiana e deita comigo me chamando pra tomar o café da manhã. Só mais um pouquinho, vai… Conto pra ele que tive aquele sonho outra vez. Ele já sabe qual é, mas escuta mesmo assim. Nesses sonhos, eu sempre tô trabalhando naquela empresa de novo e acordo de sobressalto. Preciso levar isso pra terapia.
Lembro que gastei minhas últimas sessões falando da minha ironia, questionada por uma amiga, de ser nociva. Investigo com outros amigos. Abro uma verdadeira CPI. Confio neles um feedback sincero e recebo mais do que isso. Sou acolhida. Meus amigos percebem que estou fragilizada diante de ter uma característica da minha personalidade supostamente atrelada a um defeito ou má conduta. Minha terapeuta me pergunta: quantas pessoas você conhece que, ao receberem uma crítica dolorosa, abrem uma CPI para investigarem a si mesmas? Não tenho uma resposta para essa pergunta.
Minha amiga, vários dias depois, explica que se equivocou e que aquilo que ela apontou em mim era, na verdade, um incômodo que pertencia a ela. Mas a transferência já havia sido realizada e os gatilhos, todos acionados. E, uma vez engatilhada, eu passo dias, semanas inteiras inquieta e atormentada com a possibilidade de afetar meus afetos sendo basicamente… eu.
A pauta se expande, ganha novos contornos. Durante uma viagem com um casal querido de amigos, a mulher do nosso amigo reclama que ele é aberto demais, que se expõe muito e não sabe filtrar direito as pessoas que entram na vida dele. Meu namorado se junta a ela e faz a mesma queixa de mim e diz que, por conta disso, eu vivo me machucando. Fico observando os dois que não passam frio, pois estão cobertos de razão e anuncio: "está reaberta a CPI da Roberta”. E inaugura-se também a CPI do nosso amigo.
Levantamos as taças e brindamos a isso, às gargalhadas. Sinto alívio por estar, finalmente, conseguindo acomodar aquele incômodo que eu venho tentando encontrar uma posição confortável há mais de mês.
Ao abrir uma investigação sobre si, você não só se expõe às críticas, mas principalmente - e sobretudo - fica completamente vulnerável. Ocupa o lugar de réu por livre e espontânea vontade de melhorar.
Enquanto eu viro o último gole de vinho da minha taça e o casal de amigos ri solto da minha piada, eu me sinto profundamente agradecida, macia, feliz. Veja só: essas pessoas estão dispondo do tempo delas para me investigar, mas não é porque o meu jeito incomoda, é porque gera genuína preocupação.
Se alguém, algum dia, já abriu uma CPI pra você porque não queria te ver de coração partido outra vez, vai por mim, você é privilegiado(a), sim.
Vi, gostei, compartilhei:
No começo de maio, eu inaugurei a minha coluna no site da Euro Dicas, com um tema bem cremosinho: comida na Itália é papo sério: veja o porquê.
Perdida no personagem: dividir nossos pedacinhos ruins também faz parte.
E essa arte, da Rafaella Tuma, gente, que é muito, muito a minha cara (e de quem mais estiver lendo isso e tiver memória falha), pelo amor da deusa. Cata:
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Um beijo e até a próxima edição!
Roberta Simoni
O que você chama de CPI, eu chamo de livro de aberto. Eu sou literalmente um livro aberto, feliz e infelizmente. Ironia? Já nem peço desculpas... Sem filtro, depois de 43 anos, acho que não vou mudar, kkkkk. E por falar em mudança, (foram váriaas) também fiquei curioso sobre o livro. Vou lá ler sobre comida italiana. Un baccio 🤌
Tem mesmo esse negócio de dar saudade sem doer quando a gente mora fora. Adorei te ler aqui.
E obrigada pela indicação <3