“A conta da senhora foi bloqueada por falta de movimentação", me explica o gerente do banco. Tenho vontade de pedir pra ele parar de me chamar de senhora, mas me concentro em tentar resolver o problema. Ele continua: “quando foi a última vez que a senhora tentou entrar em contato com o banco?”
Começo a vasculhar minha memória e lembro daquela cena patética: eu com o aparelho celular no viva voz, aflita, andando de um lado pro outro da sala, explicando para a atendente que o meu aplicativo estava bloqueado de novo e que aquela já era a milésima vez que eu estava ligando para tentar resolver o problema, torcendo para o crédito do meu celular não acabar porque eu estava usando meus últimos euros daquele mês pra fazer aquela chamada.
Depois que a moça me orientou a fazer o mesmo procedimento que, é claro, não funcionou, meu rosto começou a arder e involuntariamente meus olhos se inundaram. Comecei a chorar, num misto de ódio e frustração. A atendente, do outro lado da linha, após um longo e constrangedor silêncio, me pediu pra ter calma, garantiu que nas próximas 48h eu conseguiria acessar tranquilamente a minha conta e acrescentou: “se o seu aplicativo continuar bloqueado é só tornar a ligar para a central de atendimento, senhora.” 48h depois, é claro, nada se resolveu, e eu nunca mais tornei a ligar.
“Há cerca de um ano”, respondo pro gerente.
Por isso eles bloquearam a minha conta, penso, devem ter achado que eu morri.
Tentei ignorar o problema do mesmo jeito que ele estava me ignorando, como quem se vinga de um objeto inanimado xingando-o, dando murro em ponta de faca, empurrando uma parede que esbarrou.
Nas últimas semanas, viver na minha pele e habitar a minha cabeça tentando encontrar uma saída pelos labirintos sombrios repletos de burocracias que eu fiz de tudo para escapar por um ano, tem sido uma experiência pouco divertida, nada lúdica e que tem me obrigado a me confrontar com a minha versão menos apta a frequentar esse planeta.
Essa versão é justamente aquela que precisa lidar com gerentes, atendentes, filas. É ela quem precisa atualizar a situação com a Receita Federal, ter um contador, marcar consultas médicas, fazer exames, se inscrever no mestrado em uma língua que não domina. Mas o que ela faz? Ela procrastina e procrastina e procrastina. E quando se vê diante das barreiras, bom… ela chora.
Fosse ela mais parecida com a versão do Tyler Durden, do Clube da Luta, ao menos dava pra resolver os problemas na porrada, mas não. Nenhum dos meus personagens foi criado pelo brilhante Chuck Palahniuk. Até onde eu sei, sou eu mesma que estou escrevendo minhas páginas e ter de lidar com essa versão débil, confesso, é uma decepção enorme e tem me deixado triste, sem vigor e energia.
Mas, percebo agora, enquanto escrevo: é muito mais confortável falar sobre as minhas limitações assim, na terceira pessoa. Separar-nos em versões dói um pouquinho menos porque ajuda a entender-nos como indivíduos múltiplos que, afinal, é o que somos.
Tem outras versões minhas que eu gosto e das quais me orgulho. Uma delas, inclusive, conseguiu a incrível façanha de vender mais de 250 cópias do meu livro no mês que passou (o que foi um recorde desde o seu lançamento e algo INÉDITO na editora, me afirmou - assim mesmo, em Caixa Alta - meu editor), mas eu não estou certa se é sobre ela que eu preciso lançar luz agora.
O problema é que a versão que conseguiu se promover como escritora em junho, contrariando todas as expectativas da Síndrome da Impostora, paulatinamente perde o foco e a vitalidade quando se depara com a versão pragmática inábil que se comporta feito uma criança birrenta, embora todos insistam em chamá-la de senhora (e talvez seja justamente por ter que se confrontar com a maturidade implícita na palavra “senhora” que a aborreça tanto).
Essas versões, entram em colisão numa mente que está buscando diariamente uma forma de ser mais produtiva, de encontrar novos meios de sustento através da escrita (uma vez que os 10% de lucro pela venda dos livros não geram renda), atreladas ao desafio de ter a Laura (minha depressão) me abraçando de conchinha todos os dias quando desperto, tornando a saída da minha cama o primeiro grande desafio diário, em pleno verão europeu - estação que mal começou e que eu não vejo a hora de ter fim -, tudo isso faltando poucos dias pro meu aniversário, data em que eu fico particularmente atordoada, desejando ficar veemente feliz mas, por muitos motivos, fico sempre melancólica.
Essa semana, a Vanessa Guedes fez uma excelente análise sobre o que é ter uma vida boa - e por que não temos uma? - e escreveu:
“Se me sinto deprimida com o que me aconteceu nos últimos dias e angustiada com o que pode acontecer nos próximos, a única coisa que resta para o momento de agora é fugir da agonia que é estar viva.”
Por aqui, enquanto eu estou agonizando, eu tenho tentado fugir de muitas formas. Uma delas é brincar de colagem. No Brasil, eu deixei guardada na casa dos meus pais uma pasta com a minha coleção de recortes de revistas e jornais que eu eventualmente pegava para fazer cartas, caixas e murais. Recentemente descobri um aplicativo onde posso usar a minha coleção de imagens do Pinterest com a mesma proposta, só que virtualmente.
Esses são os meus primeiros experimentos, ainda bastante amadores, que, no entanto, não me provocam nenhum embaraço trazer a público:
Dois livros estão ajudando a desviar minha atenção do feed infinito do Instagram:
O maravilhoso Afetos Ferozes, da Vivian Gornick, que tem uma escrita visceral, intercalando relatos do passado e do presente de uma forma muito envolvente.
E o bombado Ioga, do Emmanuel Carrère, que está me prendendo bem menos que o primeiro, mas tem potencial. Sigo apostando na leitura porque um fenômeno desses não vira um fenômeno por acaso.
Além disso, na tentativa de me conectar com a minha versão realizadora, voltei a mexer no meu romance. Mas é precoce comemorar. Esse é um projeto que comecei a desenvolver durante o período de isolamento social provocado pela pandemia e já abandonei outras vezes porque eu tenho por ele um carinho e um assombro em medidas proporcionais, pois considero-o relevante e igualmente improvável, por ser muito engenhoso. No momento, estou trabalhando nele com afinco para tentar torná-lo mais interessante aos meus próprios olhos.
Não sei se com você também é assim, mas por aqui a engrenagem funciona muito melhor se eu encontrar o encanto. Tem que ter aquela faísca, sabe? Aquela coisinha que faz brilhar os olhos, mesmo que o medo continue se esgueirando pelas páginas seguintes. E ele vai, eu sei que vai. Mas eu preciso terminar de escrever um capítulo, ler, reler e achar do caralho. Se eu considerar ordinário, não basta. Fico presa naquele capítulo até encontrar a chama. Ou até perder o foco.
Será que isso também acontece com escritores homens?
Suspeito que o processo seja diferente. E essa reflexão, saindo do meu micro universo de versões em colisões, expandida para uma realidade onde a mulher precisa se destacar em tudo o que faz (e aqui estende-se para todas as profissões), justifica essa auto cobrança excessiva por excelência.
Há muito tempo eu não me sentia tão acolhida como eu me senti pela escritora argentina Betina González, no artigo publicado na Piauí, onde ela discorreu sobre a obrigação de ser genial. Para uma mulher, só a obra-prima permite que o crime cometido em solidão – o de escrever – seja perdoado:
“(…) Nem todos os escritores homens têm “a obrigação de ser geniais”, só aqueles que, de um modo ou de outro, foram relegados ou excluídos, situação na qual, de fato, se encontram todas as mulheres escritoras. O corolário é simples: uma escritora tem a obrigação de ser sempre genial, um escritor pode se contentar em ser bom, aceitável ou francamente medíocre, pois até para a mediocridade masculina há espaço no campo literário, garantido pelo simples pertencimento de gênero.
As palavras de Betina foram tão pertinentes e impactantes que eu ainda me pego revisitando esse artigo de vez em quando para me sentir abraçada. E, na intenção de te transferir esse abraço-colo, transcrevo aqui mais um trecho:
“(…) Fazer coisas com palavras é uma proeza – “engenhosa e banal”, mas proeza enfim. Escrever é, enquanto dura esse momento maravilhoso do raio de Sol, ainda, um tesouro. Ler, escrever, é entregar-se a um jogo muito íntimo, íntimo demais para a luz do dia. O mundo suspeita (e com razão) de qualquer pessoa que ouse pôr suas fantasias por escrito.
Para uma mulher que escreve, o segredo pode adquirir outros sentidos. Pode ser um modo de sobreviver, o único, talvez, em que o jogo tem chances de se realizar; pode ser uma estratégia, a astúcia do animal que finge ser inofensivo; pode ser (muitas vezes é) a desistência de participar de uma festa para a qual sabe que não foi convidada, por mais que agora esteja na moda distribuir convites para cumprir cotas de gênero (fazer a própria festa, isso sim que é viver na escrita).
Isso me leva a uma intuição ainda mais velada na minha precoce consciência da escrita como coisa proibida. Qualquer mulher escolarizada da minha geração sabe disso, mesmo que não se dedique a contar histórias: escrever é coisa de homem, e o cânone a que nos vemos expostas como leitoras confirma esse fato uma vez depois da outra. E não só isso: os protagonistas das histórias que vale a pena contar, os “heróis” em outros discursos afora o literário, são em sua maioria homens. O masculino é o sujeito social por excelência, e o papel “a desejar”, portanto, é inalcançável já desde seu próprio ponto de partida. Para uma mulher, escrever é apropriar-se desse sujeito, e essa apropriação tem um alto custo. É o deslocamento total, a desubicación extrema. Uma transgressão, uma espécie de crossdressing, o cúmulo do “quem você pensa que é?”
Em momentos como esse que eu estou atravessando (e que talvez você que me lê também esteja) seria incrível se existisse uma receita mágica para fazer passar depressa. Na ausência dele, o meu remedinho é buscar leituras reconfortantes para não me sentir só. Algumas das minhas “leituras-rivotril”, eu dissolvi ao longo desta edição. Outras, vou incluir aqui embaixo antes de me despedir.
Talvez eu escreva outro texto antes do dia 22 de julho, que é quando essa senhouuura aqui completa 39 anos, talvez não. Mas eu não me demoro a voltar. Enquanto isso, se você sentir vontade de me presentear, eu criei uma lista de livros que eu desejo tanto ler ♡ (se a gente morar longe, você pode comprar em ebook). Aliás, eu copiei essa ideia de listinha de livros da Barbara Bom Angelo, que tá fazendo aniversário hoje! Cancerianos são tudo! Parabéns, Babi.
Você pode também se tornar um assinante pago desta newsletter ou pode ainda adquirir um exemplar do meu livro, que é uma forma de se presentear também. As opções são muitas - e super fáceis - de me fazer feliz.
Essa semana uma leitora me escreveu dizendo que as páginas do meu livro resgataram a beleza dos seus dias cinzas e eu percebi, naquele momento, que eu fui a “leitura-rivotril” de alguém. Nessas horas aquela faisquinha também reacende. É gostoso quando acontece. Sabe o que eu faço? Corro pra escrever.
“Quem eu penso que sou?” Eu sou escritora, porra.
PS: uma escritora que segue com a conta bancária bloqueada. Menos mal que palavras não dependem de números.
Vi, gostei, compartilhei:
Um corpo: o controle social da beleza.
"Bom dia, menina!" - o senhorzinho, distribuindo seu canto delicado e potente, destoava da contenção sonora do horário — mas não chegava a incomodar. Não era barulho. Era cor, poesia, afago. Coisas que nunca incomodam.
E, pra fechar, um recadinho pra quem romantiza suas piores versões:
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Curta, comente, interaja comigo. Vamos construir laços e memórias! ♥️
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Um beijo e até a próxima edição!
Roberta Simoni
Querida!! Você esbanja criatividade!!! Sua escrita é genial, Beta, você toca fundo a alma da gente com tremenda facilidade. Seus temas são tão fortes, reais e profundos quanto você mesma! Linda do meu coração 🥰🥰🥰
Esse app (shuffle, né?) é um ACHADO, e vc é a melhor pessoa para tê-lo em mãos. Achei sintomático que nesse texto as imagens se movimentam (ou evocam a não paralisia). Sempre me assusto com a minha menção nos seus textos. Eu preciso que vc dê prosseguimento ao seu romance (já sou viúva de vários dos seus, todos mereciam vida longa - não morrer indigente numa vala comum do google drive). A burocracia é o oposto da criatividade, no entanto, é a burocracia que conjura as condições para a arte deixar o mundo das ideias e nascer nesse mundo material. É na hora da burocracia que o artista atravessa o vale da sombra da morte. Parece que estou derramando palavras a esmo? Eu acho que parece. Eu acho que tô.