Quando o mundo começa a apresentar novos contornos
A infância é uma fase igualmente mágica e dolorosa porque é quando descobrimos as belezas e as feiuras ao nosso entorno.
Quando foi que você descobriu que a maldade existia?
É uma pergunta difícil, eu sei. Mas, se você cavar lá no fundo da memória, talvez se lembre.
Eu descobri quando era miúda. Todos nós descobrimos ainda na infância, alguns mais cedo, outros um pouco mais tarde. Mas nem sempre nos lembramos do momento preciso. A verdade é que a infância é uma fase igualmente mágica e dolorosa porque é quando descobrimos as belezas e as feiuras ao nosso entorno.
Eu era uma menina muito boazinha. Não no sentido de ser uma criança tranquila, mas bondosa. Era espevitada, arteira, curiosa, mas muito gentil e educada. Não conhecia a maldade humana, sequer farejava uma atitude maliciosa.
Foi numa festa de bodas de prata dos meus avós paternos que o mundo começou a se mostrar com cores e contornos diferentes pra mim, através de uma menina da mesma idade que a minha. Vamos chamá-la de Clarinha.
Clarinha era uma prima distante, de segundo ou terceiro grau. Não tínhamos muito contato, exceto por alguns eventos familiares espaçados. Naquela ocasião, a família estava toda reunida, tinha gente de tudo quanto era canto.
O cenário não era diferente das festas dos anos noventa de qualquer família de classe média baixa: uma mesa repleta de salgadinhos gordurosos, uma enorme torta salgada, salpicão e uma outra mesa com bolo e docinhos (que só podia mexer depois do “Parabéns”), dois ou três recipientes grandes de isopor repletos de gelo com cervejas e refrigerantes. Música alta, mesas e cadeiras de plástico espalhadas pelo quintal. Adultos embriagados e crianças correndo pra lá e pra cá. Eu era uma delas.
No alto dos meus seis anos, eu era uma criança feliz. Andava de mãos dadas com Clarinha, brincava de pique-pega e só parava de vez em quando pra comer algum salgadinho, tomar um gole de refrigerante e roubar um brigadeiro. Roubar docinhos era o maior desvio de conduta que eu era capaz de fazer naquela fase da vida.
À certa altura, minha mãe me chamou num canto e me disse baixinho: “da próxima vez que Clarinha pedir pra você amarrar o cadarço do tênis dela, diga que você não sabe, tá bem?”
Eu questionei minha mãe, disse que não podia fazer aquilo porque Clarinha não sabia amarrar o próprio cadarço, mas eu sim. Como eu ia negar ajuda? Aquilo ia contra tudo o que meus pais haviam me ensinado.
“Mas mãe…”
“Então diga que você não quer mais amarrar. E ponto final.”
Fiquei emburrada, sem entender aquela ordem descabida. Clarinha me chamava de volta pra brincar com as outras crianças e eu permanecia sentada ao lado da minha mãe, de braços cruzados, insistindo pra que ela me explicasse por que eu não podia mais fazer aquele favor à minha prima. Mamãe me dizendo pra eu voltar a brincar e parar de insistir. Mas eu não arredava o pé dali enquanto ela não me dissesse o que estava acontecendo.
Ela se viu numa situação difícil (como habitualmente os filhos deixam os pais), afinal, precisava me explicar porque estava me dizendo pra fazer o oposto daquilo que havia me ensinado, que era justamente ser sempre solícita e gentil com qualquer pessoa. Foi quando, por fim, me revelou: “sua prima está desamarrando o cadarço quando você não está olhando, depois pede pra você amarrar. Isso não é legal. Agora esqueça essa história e vá brincar!”
Esquecer? Como? Eu era uma mini canceriana. Me lembro, sobretudo, da sensação devastadora de descobrir que existia maldade nas pessoas, coisa que, até aquele momento, eu sequer desconfiava. Meu estômago embrulhou, não roubei mais nenhum brigadeiro e recusei um pedaço de bolo depois que meus avós assopraram as velinhas.
Fiquei olhando Clarinha de longe e pensando: por que ela tá fazendo isso comigo? Qual o prazer que ela sente nisso? Será que é divertido me fazer de boba? Qual é a graça?
Mais pro fim da festa, acompanhada de um sentimento novo, esquisito e dolorido que eu não sabia como nomear, me juntei a ela e às outras crianças sem nenhuma vontade de brincar. E, já ciente dos movimentos da minha prima, quando ela me pediu pra amarrar seu cadarço outra vez, me abaixei lentamente, em descompasso com o meu coração que batia acelerado, fingi que ia dar o laço no seu calçado e fiquei observando sua reação.
Clarinha sorrateiramente cutucou as outras crianças enquanto eu estava agachada e, apontando pra mim, mostrava como me fazia de boba, dando risadinhas enquanto levava uma das mãos à boca, jogando a cabeça para trás.
Foi essa cena - que gravei na memória com precisão - que minha mãe deve ter assistido algumas vezes agoniada até não aguentar mais e precisar interferir. Hoje, me colocando no lugar dela, imagino a sua aflição. Naquele momento ela se deu conta que ela e meu pai não haviam me preparado para as perversidades do mundo.
Não lembro se chorei, se briguei com a garota ordinária ou se dei um nó cego no cadarço dela. Eu gosto de pensar que sim, mas duvido muito, porque me faltava astúcia pra tomar uma atitude tão perversa assim. Dali em diante tudo se apresenta embaçado na minha memória. Só lembro mesmo do barulho ensurdecedor da ficha caindo. Da descoberta devastadora que as pessoas fazem maldades gratuitas, a troco de absolutamente nada. Essa sensação me acompanha até hoje.
Provavelmente eu devo ter contado pra Clarinha, em algum momento daquela festa, que já sabia amarrar meus próprios calçados. E devia estar muito orgulhosa com aquele feito. Ela deve ter interpretado aquilo como uma ofensa pessoal e decidiu me atacar, mas eu, livre de qualquer malícia, em momento nenhum percebi o ataque. Acreditei o tempo todo que estava fazendo uma gentileza genuína. E mesmo me sentindo cansada de ajustar seus tênis a cada cinco minutos, não me recusava a ajudar, pois temia que ela tropeçasse e caísse com os cadarços desamarrados.
Ela apoiava as mãozinhas nos meus ombros, enquanto eu amarrava devagarinho seu cadarço a fim de ensiná-la como se fazia e, de cabeça baixa, concentrada, na intenção de acertar o laço de uma vez por todas, não desconfiava que ela se aproveitava pra zombar de mim. Capaz até que ela soubesse melhor do que eu como amarrar os cadarços, já que sabia tão bem como enrolar os outros.
Duas meninas de seis anos. Uma desprovida de maldade. Outra aparentemente bastante íntima dela. O que diferia as duas? Criação? Caráter? Ambos? Não se sabe, mas naquele dia, o mundo das duas colidiu.
E, numa brincadeira de criança, eu conheci a maldade. Vi pela primeira vez a face dela, senti, toquei, provei. Voltei pra casa com aquele gosto amargo.
Aquilo que eu senti pela primeira vez quando eu tinha seis anos e não sabia como chamar, tinha nome: era decepção. E eu tornaria a sentir inúmeras vezes. Nunca mais com Clarinha, é claro (que se tornou uma adulta intragável, com quem eu cruzo vez ou outra, quando torno à minha cidade natal e faço questão de manter distância), mas com gente próxima que eu não poderia supor, mesmo depois de Clarinha já ter clareado as coisas pra mim. A verdade é que eu demorei pra desenvolver o meu faro.
Hoje em dia tenho a intuição como grande aliada e um monte de outros instintos aguçados, afinal, lá se vão quase 40 anos habitando nesse “planeta do capeta" vivendo na pele de uma mulher que transita sozinha por aí a maior parte do tempo. Ao menos esperta eu tive que ficar, mas a ingenuidade, que coisa… parece que não se perde.
Tem coisa que gente essencialmente boa nunca vai entender. Mesmo se Clarinha batesse na minha porta hoje disposta a explicar o prazer que sentiu com aquela atitude, eu continuaria confusa, com as mesmas dúvidas que eu tinha quando era criança.
Além disso, acho que passei ilesa por uma maldade aqui, outra ali porque a graça se esvaiu pro maldoso ao notar que eu não entrei no clima porque nem entendi o que tava rolando. Outras, no entanto, machucaram, arderam, queimam até hoje.
Mas tem uma coisa muito bonita que acontece com gente que é do bem: um ímã mágico pra atrair gente boa também. A proporção de pessoas que praticam o bem perto de mim - e pra mim - é imensamente maior do que a de gente que age com más intenções. E isso explica o porquê de gente como a gente ser meio despreparada pra esse mundo.
Então, no fim das contas, nós aprendemos que existe o mal, mas continuamos acreditando no bem, mesmo traumatizados e andando com o pé sempre um pouco recuado. Sucede que pessoas como Clarinha brotam no nosso caminho pra nos manter alertas, mas não têm esse poder todo de alterar a nossa essência. Nosso primeiro impulso ainda vai ser amarrar seus cadarços se elas nos pedirem gentilmente.
Vi, gostei, compartilhei:
Depois da pergunta que eu lancei lá no começo do texto, ainda remexendo no baú de memórias dolorosas, neste vídeo a pergunta é de outra natureza, mas também nos faz resgatar lembranças que talvez ajude a entender o que nos fez começar a enxergar o mundo - e a nós mesmos - com novos contornos (tem legenda em português):
…
Daqui em diante sigo com os links das leituras que tem menos a ver com o tema desta edição, até pra aliviar a "tensão" das memórias que nem sempre gostamos de acessar, mas que estão lá para nos lembrar como nos moldamos.
Separei links de textos que li nesse universo maravilhoso de newsletters e me tocaram de diferentes formas. Vem comigo que a curadoria tá linda:
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Beijos e até a próxima edição!
Roberta Simoni
A Clarinha da minha infância se chamava Leonor. Ler esse texto me fez ficar com o estômago embrulhadinho aqui… mas o coração tá quentinho, viu? Cheio de esperança! ❤️
Ahhh que texto mais bonito, Roberta. Senti a angústia junto com vc, mas também a beleza do aprendizado♡ e obrigada pela recomendação, fiquei honrada!!